quarta-feira, 5 de março de 2008

Memórias do Liceu


Entrei para o D.João III em 1965, há mais de 40 anos. Naquele tempo, nas cidades de província, os liceus tinham um peso e uma importância que hoje não têm, mesmo se, em Coimbra, esse peso se atenuasse pela concorrência desigual da Universidade. Era o único liceu masculino da cidade e começava, então, a receber os efeitos dos primeiros passos da democratização do ensino.
O Portugal urbano dos anos 60 vivia no cruzamento de influências contraditórias. Por um lado, o ambiente bafiento de um salazarismo já sem energia, esgotado política e ideologicamente, a dar sinais de um fim que se aproximava. Por outro lado, os ecos refrescantes de uma cultura jovem e contestatária que chegavam da Europa, anunciando uma modernidade que finalmente (mas timidamente) invadia a vida e as mentes portuguesas. Não se pode dizer, no entanto, que déssemos claros sinais de termos sido tocados por essa modernidade. O entusiasmo pelo sucesso dos "magriços" em Inglaterra ou pelos triunfos caseiros da Académica, era mais forte do que a consciência de que vivíamos numa ditadura ou do estado de pobreza geral em que o país vegetava. Mas o despertar para a vida, próprio da adolescência, com as suas descobertas intelectuais e afectivas, embatiam (naquele microcosmos liceal) num muro de distância e de brutalidade autoritárias que muitos hoje, na distorção saudosista da memória, confundem com a necessária autoridade pedagógica. A figura antipática de um reitor tirano e a prática de regras de disciplina absurdas, não infundiam nos jovens espíritos o respeito pela autoridade consentida nem o prazer da aprendizagem mas o medo e a desconfiança. A proibição sem sentido e a repressão conduzem à transgressão e à contestação. Daí que o prazer com que desobedecíamos ou contestávamos uma ordem ou regra, assumisse o peso de um acto heróico, por muito ridículas que hoje nos pareçam as razões. Lembro-me, por exemplo, do escândalo que perpassou quando uma jovem professora ousou apresentar-se ao serviço... de calças.
E, no entanto, é uma memória agradável, aquela que ficou. A exclusividade masculina do corpo de alunos, com os efeitos negativos que necessariamente teve na sua formação, libertou, todavia, neles um sentido de solidariedade e de cumplicidade decisivo na construção do seu caracter. Mesmo a actividade académica, vista a esta distância, apesar da severidade e formalidade das relações, tinha, não digo uma qualidade mas uma eficácia que hoje nos causa inveja. Não foi, por isso, sem emoção que vinte e quatro anos após ter abandonado o D.JoãoIII, voltei a entrar no velho edifício do José Falcão, agora como professor.



Miguel Saturnino, Professor de Filosofia

CINEFALCO


Relatar a minha passagem pelo Cinefalco é escavar um contexto muito específico a diversos níveis, é voltar a pesquisar significados num percurso indissociável de tantas outras vivências, é recordar o que foi uma
busca e, sem o saber, se revelou um achado.
Recordar não é viver de novo, mas é sem dúvida cimentar o que se viveu. É também interligar velhas encruzilhadas, clarificar um certo tom baço teimosamente subsistente. É, além deste exercício íntimo, a partilha do fortalecimento e da formação enquanto pessoa em crescimento permanente, enquanto ser em busca de algo que o definisse. Esse encontro frontal com o cinema, com um novo modo de ver o cinema e a vida no cinema, reveste-se de uma intensidade mais gritante quanto mais feroz era o desamparo e o sentimento de deriva numa escola, em todo um processo algo afastado de muito a que me pudesse socorrer ou sustentar na ânsia, natural, de crescer identificado com algo. Mesmo que essa caminhada se salpicasse pela margem, alheada dos moldes da normalidade, mesmo que nem no desvio conseguisse encontrar uma norma.
O encontro, o confronto também, não seria possível sem a figura do professor, inabalavelmente querendo ensinar a quem inabalavelmente queria aprender. Voz de agressiva inconformidade, voz de serena inquietude revelando novos trilhos sobre o ecrã sempre pairando por detrás de si, fintando as tristemente solitárias tardes de quarta-feira com a invariável vontade de estar presente. Tristes pelo desinteresse geral, tristes por um olhar que assim subsistiu tolhido em algum isolamento, mas redobrado em cumplicidade, em partilha, no sustentar de uma relação que cresceu e se alimentou em grande parte dessa persistência, desse interesse nunca derrotado, dessa fome de saber, mais forte que tudo em redor.
Do interesse em aprofundar esse olhar, à vontade em querer partilhá-lo pela escrita, percorreu-se uma considerável distância num pulo humilde mas audaz e consistente. É quando o querer saber sempre mais se alia ao fervilhar desse desejo, que o resguardar para si mesmo se torna insustentável, crescendo com incontornável força a necessidade de mostrar, de dissecar ainda mais o objecto que se ama para um público com o qual se pretendia comunicar sem barreiras, em olhar frontal de amizade e cumplicidade. Um público que se desejava e deseja participativo, leitor interessado de um jornal que sobrevivia e sobrevive pela força do trabalho, pela paixão de (de)ver feito, de saber completo um esforço comum, pela garra de se assumir vivo e tornear o entorpecimento geral.
Hoje resiste à erosão do tempo uma alegria distanciada, um conforto em saber ter acontecido, ter feito parte com mais algumas pessoas de um passado recente que deixou marcas, que subsiste indelével porque indeteriorável. Um passado que resiste intocável porque avesso a modas, tendências ou adulterações, um passado pleno de camaradagem e de amizades que resistem ao passar dos anos... as de carne e osso e as de celulóide.
Hoje o caminho é bem menos turvo e bem mais definido. As inquietações subsistem, talvez com outra roupagem, porque inquieto é todo aquele que não consegue deixar de pensar o mundo em que se encontra, que o quer agarrar em vez de cobardemente pairar sobre ele. Ao professor Luís Ribeiro agradeço muito do que posso considerar ser hoje, muito do trilho pelo qual enveredei, muito do material com que me fui construindo neste tempos. Agradeço-lhe o interesse, agradeço-lhe a vontade de acreditar e a persistência em mostrar que ao crescermos para os outros, crescemos também face a nós mesmos. As "lições", as dicas, as conversas, cinéfilas e não só, foram agarradas com força e exactidão, numa ânsia que não estagna, mas evolui, alimentando-se de si mesma num ciclo que espero interminável.


Manuel Jorge Pereira - Curso de Estudos Artísticos da U.C.

terça-feira, 4 de março de 2008

O Testamento do Dr.Mabuse

Obra-prima de Fritz Lang, Dr.Mabuse é um filme que nos conta a história de um génio do mal. Mabuse, dotado de uma lógica quase sobre-humana, utilizava a sua fascinante mente para cometer crimes perfeitos, através da hipnose, enquanto paralelamente desenvolvia a profissão de médico numa prestigiada instituição. Ao ser apanhado, foi internado no hospício do professor Baum, uma vez que, devido aos sinais de loucura que apresentava, lhe foi reconhecido o estado de insanidade mental. Durante anos, permaneceu estático, preservando um inquietante ar fantasmagórico; mas o seu estado clínico mudou, e, deixando o estado de apatia, começou a escrever palavras e frases, ao início, sem lógica, mas que progressivamente ganharam coerência. Ao organizar esses apontamentos de Dr. Mabuse, um médico do hospício, Dr. Kramm, constatou que se tratavam de instruções para cometer roubos, e que essas mesmas instruções estavam a ser seguidas por bandidos. Professor Baum, médico que acompanhava Mabuse diariamente, considerou ridícula a hipótese de que Mabuse estivesse durante este tempo a comandar toda uma estrutura criminosa de dentro da sua cela hospitalar, fingindo um estado de loucura para ter um álibi. Quando Kramm ia à polícia contar a sua conjectura, foi brutalmente assassinado.
Inspector Lohmann, inspector da polícia, procura então o responsável pelo assassinato, enquanto paralelamente investiga a história de Hofmeister, homem que lhe estava para revelar o nome de um alto criminoso quando foi atacado, tendo mais tarde sido encontrado enquanto deambulava pelas ruas, louco. A juntar a estas duas histórias, aparece a de Tom, um desempregado que, para sobreviver, é obrigado a juntar-se ao mundo do crime, donde quer, mas não consegue, sair. Observamos o desenrolar destas três histórias que se acabarão por fundir, tendo como elemento de ligação Dr.Mabuse. Semeando o caos, Mabuse pretende instaurar um império do crime. Apesar de chegar a morrer fisicamente (ou pelo menos criando essa ilusão), o espectro de Mabuse assume o corpo do professor Baum, que já anteriormente tinha dado provas de não conseguir resistir ao poderoso controlo mental que sobre ele exercia. Foi partir deste que Mabuse organizou a sua rede criminosa, que comete crimes perfeitos não pelo dinheiro mas sim para criar a confusão e o medo, para alcançar o tal estado de anarquia. Ao descobrir isto, com a preciosa ajuda de Tom, Lohmann e este tentam capturar o professor Baum, que irá aparecer no hospício, irremediavelmente louco.Este é um policial expressionista em que o vencedor não é nem a polícia, nem o criminoso; antes a loucura. Mabuse é a sua personificação; o seu rasto é composto pelas vítimas que arrasta consigo, casos de Hofmeister e de Baum. Ninguém escapa à proximidade de Mabuse; ninguém escapa à proximidade da loucura. Somos todos confrontados com ela, e embora possamos não ser seus escravos, ela acaba por ter pelo menos uma interferência indirecta na nossa vida. A loucura é a confusão, o inesperado, algo que escapa ao nosso alcance lógico; produz em nós um estado de estupefacção, de receio, pois não entendemos a situação. O homem tem medo da loucura, tem medo daquilo com que não está habituado a deparar-se; a única forma de vencer o medo e a loucura, é não fazer de conta que não existe, e enfrentá-la.Uma obra capaz de mostrar uma realidade dura, em que os problemas acabam por não se conseguir travar, mas apenas atenuar. Não há, por isso, nenhum salvador que apareça para derrotar o mal para que o bem prevaleça; como acontece na realidade, há certas coisas que escapam ao nosso domínio; o nosso dever é tentar compreendê-las, mas nunca com a prepotência de sobre ela criarmos axiomas.
Uma obra de belo efeito, onde mais uma vez o
famigerado jogo de sombras expressionista nos proporciona imagens excelentes e onde os efeitos especiais são de grande qualidade (não só para a época, visto que o filme data do ano de 1933, como também quando comparado com alguns que são feitos hoje em dia). É também uma obra que se revela muito importante na caracterização do ambiente cultural, social e económico da época. Todo o ambiente de degradação que a Alemanha experimentou depois da primeira guerra mundial aparece expresso no filme. O desemprego, o responsável pela associação de Tom ao mundo do crime, é um bom exemplo disto.
O filme pode ser ainda interpretado como um alerta para o perigo nazi, uma crítica acérrima à loucura política. Na época, este partido ganhava cada vez mais expressão, aproveitando-se (tal como a rede criminosa de Mabuse) daqueles que viviam na miséria e que estavam por isso mais expostos a serem influenciados. Este filme foi proibido na Alemanha nazi, que chegou, no entanto, a oferecer a Fritz Lang o cargo de dirigente cinematográfico do país. Não se sabe se o realizador terá dito que precisaria de um dia para decidir, ou se terá prontamente aceite. Certo é, que no dia seguinte, Fritz Lang tinha partido para a América, declinando o convite da loucura.


João Alberto - 11º5 nº9

Memória Figurativa