quarta-feira, 9 de junho de 2010

OS FILÓSOFOS E O SEU PAPEL NOS PERÍODOS PRÉ E PÓS REPUBLICANO


No ano em que se comemora o primeiro centenário da proclamação da República, faz sentido uma reflexão – mesmo que breve e sem pretensões de grande pormenor - sobre o papel desempenhado por alguns intelectuais portugueses, nos períodos anterior e posterior à sua implantação.
Na curta e despretensiosa divagação que se segue, vão ser lembrados apenas alguns dos que estiveram ligados à Filosofia e às questões de natureza filosófica em voga no seu tempo.
Colaborando activamente com outras forças antimonárquicas, em que se incluíam escritores, artistas, e militares dos vários ramos e outros, os filósofos portugueses desempenharam um papel de relevo nos movimentos e defesa dos ideais que levaram ao estabelecimento e consolidação do novo regime.
Convém contudo, antes de o fazer, dar uma breve ideia do ambiente liberal em que nascem e se desenvolvem as tendências republicanas no nosso país, já que as primeiras referências que lhe são feitas, embora tíbias, surgem já no início da Monarquia Constitucional e estão ligadas aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que foram lema da Revolução Francesa.
É nas Cortes Gerais de 1820 – noventa anos antes da proclamação da república – que se faz alusão a um ideário republicano, embora não estivesse bem clarificado e ainda menos consolidado um corpo doutrinário que lhe desse suporte – uma indefinição que havia de perdurar durante todo o período da monarquia constitucional. A permanente instabilidade política, o estado de subdesenvolvimento e as condições socioeconómicas do país, favoreciam o desenvolvimento e expansão das ideias republicanas.
Em pleno período da Monarquia liberal, Oliveira Martins, na sua História de Portugal, refere a degradação do país e das suas instituições. Assinala as contradições entre as promessas e a acção dos políticos que deixavam o povo incrédulo e desconfiado: ”A idolatria da liberdade e do progresso, em cujo nome os ideólogos o agitaram com sucessivas revoltas, só poderia ser para os homens educados pela Europa contemporânea. O povo, quando os seguia, era apenas arrastado por seduções, por influências, por ilusões – porque não havia, nem podia haver nele consciência”. E, continuando a descrever as causas que corrompiam os alicerces da monarquia liberal, diz: “ Não concorria para esse resultado a ideologia liberal, apenas, pois, com os seus processos condenáveis, com as suas tendências intolerantes, os nossos doutrinários semeavam também a anarquia, ao mesmo tempo que procuravam
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consolidar a obra da revolução (…). Deste conflito de opiniões e pessoas nasceu uma situação que todos vieram a reconhecer intolerável. Quando dizemos todos, referimo-nos aos políticos; porque, na sua grande massa, o povo, não compreendendo a nova religião, desadorava-a por ver que esse verbo novo não conseguia estabelecer uma paz e uma fortuna que agora, depois de 34, já, pelo menos, sabia desejar.” ( Oliveira Martins, História de Portugal) . E, em “Estudos sobre a Reforma em Portugal, escrevia José Félix Henriques Nogueira, (1823 -1858),um dos fundadores do republicanismo e do socialismo:” quisera que, num país como o nosso, emancipado por cruentos esforços da tutela humilhante, egoísta e sanguinária da monarquia absoluta, cansado do regime espoliador, traiçoeiro e faccioso da monarquia constitucional, necessitado de restaurar as forças perdidas em lutas estéreis e de cicatrizar feridas que ainda gotejam, ávido, enfim, de gozar as doçuras da liberdade por que tanto há sofrido, o governo do Estado fosse feito pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de República”.
O desgaste e descrédito da monarquia liberal tinham vindo a roer o regime lenta mas teimosamente. A contestação em crescendo, atingiu o seu pico mais alto aquando do Ultimato Inglês. Os termos e exigências feitas pela Inglaterra ao governo português, relativamente aos territórios africanos entre Angola e Moçambique, constituíram uma verdadeira humilhação para o País, e serviram de detonador para acirrar os ânimos contra o regime monárquico. A falácia da tão propagandeada aliança anglo-portuguesa caía por terra,
e deixava bem claro o nosso papel, não de país aliado mas de simples protectorado de que a Inglaterra se servia no seu jogo político e estratégias de poder no contexto europeu.
Mas, outras fortes razões de natureza interna explicam a instabilidade do País nessa altura. As lutas político-partidárias, as cisões dentro dos próprios partidos e a criação de novos partidos originavam uma enorme instabilidade e consequentes quedas de governos. Cartistas, defensores da Carta Constitucional de 1826, gladiavam-se com os Setembristas, facção mais à esquerda do movimento liberal, que tinha as suas raízes no Vintismo e que acabou por se cindir em duas facções – a moderada e a radical. O Partido Regenerador é fundado em 1851 pelos Cartistas - um partido monárquico, conservador de direita, que se manteve até à proclamação da República. Personalidades públicas, intelectuais, associações de carácter sociopolítico, associações secretas, a imprensa jornalística e panfletária exerciam também forte influência sobre a classe política e sobre o País. De entre elas merecem referência, embora só de passagem, e sem entrar em pormenores da sua acção político-social, organizações como a Maçonaria, a Carbonária, O Sinédrio, O Cenáculo, as Conferências do Casino (depois proibidas) e outras.
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Por sua vez, jornais, revistas e panfletos das mais diversas orientações políticas, reflectiam as diversas correntes de opinião, contribuindo não só para divulgação de informações e esclarecendo, como também para a radicalização de posições. Algumas dessas publicações sustentadas pelos diversos partidos tiveram uma existência efémera.
Recordando apenas alguns deles, são de referir: “O Republicano” 1848, “Eco dos Operários” ( 1850-51) ligado à fundação do “Centro Promotor das Classes Laboriosas”, ( 1853), “A Esmeralda” (1850-51), “A Península”, (1852-53) “O Almanaque Democrático” (1852-55), “ República “ (fundado em 1911 por António José de Almeida), “Nova Silva”, “A Águia”, ” A Vida Portuguesa” e muitas outras.
Aqui fica, a título de exemplo, um curto extracto do primeiro “jornal” publicado ainda em pleno período liberal:
Nº 1 do Jornal “O Republicano “ Anno de 1848”:
“(…) Somos republicanos, queremos a república(…) Sobre as ruínas de um throno cravaremos o estandarte do povo.(…) Os nossos dogmas políticos são Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Povo! Tende fé na mocidade, ajudai essa cohorte valente e ilustrada que se levanta a defender os vossos direitos. (…) Os Cabrais ,esses áulicos vis e devassos dictam-vos as leis nos paços reais , esse homens de facção mareados pelo Omnipotente com o scelo indelével dos traidores, espezinham-vos cobardemente. (..) O pauperismo, essa lepra da sociedade actual, só pode desaparecer com um governo republicano” (…)
Num outro “Jornal do Povo” nº 1 de A REPÚBLICA, também de 1848, segue-se, depois de uma breve introdução o artigo: “ REPÚBLICA ! Governo da Natureza? Governo da Igualdade! Governo da Liberdade sem licença! E Portugal quer a República? Dizemos que sim, porque o homem está sempre disposto a abraçar, e a seguir o bem. (…) ”
Mas o percurso a percorrer pela República não se mostrou, como se esperava e a propaganda política queria fazer crer, um mar de rosas.
Já no discurso ao Parlamento proferido numa das sessões para aprovação da constituição republicana, o Presidente do Governo, Teófilo Braga afirmava: “ Onze Constituições foram apresentadas a este Parlamento; é um fenómeno muito especial de psicologia para notar o estado mental sobre a compreensão deste problema mago, como se a Constituição política fosse uma obra mecânica que cada qual pudesse talhar a seu modo, exibindo visualidades subjectivas. (…) Sendo esta a Constituição, nota-se que aí não há ponto de vista de doutrina não há critério científico ou político; fez-se como uma cousa material desconexamente amalgamada e ilógica”.

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É nestes contextos liberal e republicano, intranquilos e aparentemente sem rumo definido, que se enquadra a acção intelectual e política dos filósofos e outros homens da cultura portuguesa. E, se nem todos se notabilizaram pelo seu empenhamento activo na luta pela instauração do regime republicano, muitos outros o fizeram, sacrificando, por vezes, a própria liberdade, pagando com o exílio ou a prisão a luta travada pelas mudanças que, a seu ver, poderiam pôr o País no caminho certo do desenvolvimento, da justiça social, do bem estar dos seus concidadãos e da reposição da dignidade de Portugal entre as nações.
Assim, e por ordem cronológica de nascimento, aqui ficam algumas notas sobre alguns desses intelectuais filósofos que ao seu pensamento juntaram a palavra e a acção política.



Antero de Quental (1840 – 1891). O poeta, filósofo e político que Eça, considerava “ um génio que era um santo”. Dotado de uma cultura extraordinária, conhecia bem as correntes filosóficas do seu tempo tendo--se deixado influenciar fortemente por alguns filósofos alemães, como confessa na sua carta de 14 de Maio de 1887 a Wilhelm Storck : ” … fiquei definitivamente conquistado para o Germanismo; e, se entre os franceses, preferi a todos Proudhon e Michelet, foi, sem dúvida, por serem estes dois os que mais se ressentem do espí-
rito de Além-Reno. “Li depois muito de Hegel (…). O Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual”. Para Antero, “A Filosofia é eterna como o pensamento humano: mas, porque é eterna como ele, é que é como ele continuamente instável e flutuante, susceptível de progresso e sujeita a retrocesso …”(As Tendências Gerais da Filosofia na segunda Metade do Séc. XIX).
Em 1868, fundou, com outros colegas universitários, o Cenáculo onde deixou clara a sua orientação republicana. Em 1869 criou, com Oliveira Martins, o jornal “República” e com José Fontana editou a revista “O Pensamento Social”. As suas preocupações sociais explicam a sua aceitação das ideias de Proudhon de matiz socialista, cuja influência sobressai na sua obra poética “Odes Modernas”.
Escreveu panfletos, colaborou em jornais, participou em conferências. Também algumas contradições lhe foram atribuídas em posições tomadas relativamente à união ibérica que mais tarde veio a repudiar. Conhecedor das doutrinas de Marx e Engels e defensor das classes trabalhadoras fundou em Portugal, a Associação Internacional dos Trabalhadores: “As conferências democráticas tinham sido fundadas por mim, com o concurso de homens moços(…) e eram muito frequentadas pelo escol da classe operária” (Carta a Wilhelm Storck).
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Em 1890, como resultado do humilhante Ultimato Inglês, foi chamado a dirigir o movimento de repúdio “Liga Patriótica do Norte”, fundada como reacção contra a atitude e exigências impostas pela Inglaterra ao nosso País.
Numa fase do seu pensamento político defende a União Ibérica mas, posteriormente, duvida do interesse dessa união e, finalmente, evoluiu para uma posição firme, favorável à manutenção da unidade nacional. Condenou também os movimentos açorianos favoráveis a uma ligação aos Estados Unidos, separando-se de Portugal, o que , a seu ver traria aos açorianos mais desvantagens que ganhos.

Teófilo Braga ( 1843 – 1924)
Conhecido pela sua vasta cultura, pela coerência política e pela sua firmeza de princípios, deixou uma notável obra abrangendo vários domínios: poesia, ensaio e antologias. Na literatura destacam-se Folha Verde, Stella Matutina, Tempestades Sonoras, Contos Tradicionais do Povo Português. Deixou-nos também a História da Poesia Popular Portuguesa, História do Direito, História da Universidade de Coimbra, História do Teatro Português, História das Ideias Republicanas em Portugal. Além disso colaborou em jornais foi co-fundador e director das revistas “Positivismo”, “A Era Nova” e ”Revista de Estudos Livres”. A sua orientação filosófica é caracterizada, numa fase da sua vida, pela adesão ao positivismo de Augusto Comte, cuja influência lhe serviu de orientação e exteriorizou em vários escritos, entre os quais sobressaem “Traços Gerais da Filosofia Positiva Comprovados pelas Descobertas Científicas Modernas” (1877) e “Sistema de Sociologia” (1884). Pelo seu interesse pelo positivismo e pelo grande trabalho de divulgação que encetou e pela forma decisiva como contribuiu para a sua divulgação, foi considerado o chefe da escola positivista no nosso País.
Em 1906 é criada a Fundação do Círculo de Estudos Sociais Teófilo Braga. Integrou a famosa geração de 70, que defendia a reforma das mentalidades e da cultura na segunda metade do Séc. XIX.
A sua acção política ficou também marcada por repetidas participações como membro do Directório do Partido Republicano Português. Em 1878 concorreu a deputado pelos republicanos federalistas e exerceu vários cargos no Partido Republicano Português.


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No ano de 1909 realiza-se, em Setúbal, o Congresso do Partido Republicano Português que criou um Directório que ficou encarregado de fomentar a Revolução, e do qual ele mesmo fazia parte. Em Agosto de 1910 foi eleito deputado por Lisboa e a 5 de Outubro do mesmo ano, foi indicado para Primeiro Presidente do Governo Provisório, cargo que mantém até 1911. A sua escolha para a primeira presidência foi muito influenciada por Afonso Costa e fortemente contestada pela Carbonária, a cujos quadros não foram atribuídos cargos no novo Governo. Em Maio de 1915, depois da renúncia de Manuel de Arriaga, ocupou a Presidência da República, lugar que mantém até Agosto do mesmo ano.

.Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-94),

Foi um dos espíritos mais cultos do seu tempo, tendo deixado uma vasta e diversificada obra abrangendo a história, a literatura, a política, a economia e a antropologia. Entre as suas obras merecem relevo “A Teoria do Socialismo”, “Portugal e o Socialismo” ”História da Civilização Ibérica”, “ História de Portugal”, “História da República Romana”, “Os Lusíadas, Ensaio sobre Camões e a sua Obra”, “A Inglaterra de Hoje”, “Portugal nos Mares” “Portugal em África” entre outras.
Conhecedor das correntes filosóficas do seu tempo e dotado de um espírito aberto, Oliveira Martins foi influenciado quer pela corrente do racionalismo iluminista, quer pelo movimento de ideias dos românticos alemães e ainda pela corrente socialista de inspiração proudhoniana. Também conheceu e teve em grande conta as teorias do filósofo alemão Hegel, que considerou o “Aristóteles da era moderna”. Fez parte do Grupo dos Cinco, com Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Antero de Quental, e do Cenáculo. Aderiu ao Movimento Socialista e foi deputado pelo Partido Progressista.

José Pereira Sampaio Bruno (1857- 1915)
Foi ensaísta, escritor, e filósofo. No campo das ideias, começou por ser um seguidor de A. Comte mas cedo abandonou esta posição. Liberdade, Igualdade e Fraternidade eram o seu lema. A sua intervenção política passou por fases diferenciadas. Desde muito cedo se dedicou ao jornalismo e aderiu aos ideais republicanos, tendo desempenhado um papel importante no partido. Tomou parte na revolução

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republicana de 1891, o que lhe valeu um exílio em França entre 1891 e 1893. Depois do exílio a sua atitude política sofreu alguns desvios devido, sobretudo, à sua incompatibilidade com a disciplina partidária e desacordo em relação à orientação e acção do partido depois de 1910. Passou então a dedicar-se mais ao estudo de temas filosóficos, religiosos e crítica literária. O seu espírito aberto não o impede de se dedicar ao estudo de fenómenos místicos e correntes esotéricas.
Exerceu forte influência sobre intelectuais como Teixeira de Pascoais, Jaime Cortesão, Fernando Pessoa e filósofos como Delfim Santos, Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra e José Marinho.
Dentro da sua obra merecem especial referência: A Geração Nova, 1886 (ensaio); Notas do Exílio, 1893 (ensaio); A Ideia de Deus, 1902 (ensaio); O Encoberto, 1904 (ensaio); Os Modernos Publicistas Portugueses, 1906 (ensaio); Portuenses Ilustres, 3 vols., 1907-1908 (ensaio); O Porto Culto, 1912 (ensaio); Os Cavaleiros do Amor, 1960 (ensaio, edição póstuma)


António Sérgio (1883-1969)
Tinha cerca de 27 anos quando se implantou a República e a sua obra e acção política e cultural surgem com todo o seu vigor e diversidade só depois desta data. Até aí tinha sido oficial da Marinha, mas após a queda da Monarquia, deixou a carreira e passou a dedicar-se à actividade intelectual .
De uma cultura invulgar, exemplar honestidade e firme força de carácter, deixou para além do seu exemplo uma obra admirável . Falando-nos de si, escreveu no artigo “Sobre o Problema da Liberdade em André Gide”, ( Ensaios Tomo VII). “(…) A minha cultura não é primacialmente literária, mas sobretudo científica, filosófica, sociológica e pedagógica (…)”, e sobre o seu conceito de filósofo, esclarece; “Um filósofo (ao que me parece) não é um sujeito sabedor num certo número de matérias a que se dá o nome de “filosofia”; é um homem com capacidade de elucidar ideias – em qualquer domínio; mais particularmente creio que filosofar é lançar certa luz nos domínios das ideias fundamentais”.
O vigor, diversidade e actualidade da sua obra, as suas actividades política e cultural, a coragem com que enfrentou a ditadura do Estado Novo, tornaram-no uma referência incontrolável para quem quer estudar a evolução política, cultural e social do País a partir
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da 1ª República até 1969, ano da sua morte. Notabilizou-se como crítico social, literário, ensaísta, filósofo, historiador e pedagogo. Crítico do panorama político que então se vivia em Portugal e do nosso atraso nos campos da educação e da realidade socioeconómica, achava que, sem uma forte transformação das mentalidades, não seria possível alterar a situação em que nos encontrávamos. Defensor da liberdade, da democracia e dos direitos de cidadania, escrevia no artigo “Relanços de Doutrina Democrática”, publicados na revista “Seara Nova”, de Janeiro de 1933: “Se o português não tem, por exemplo, a educação cívica do inglês, o remédio é treiná-lo para a liberdade, para a vida política consciente, permitindo-lhe adquirir, assim, a educação cívica de que carece. Ora, a educação para o civismo faz-se pelo uso dos direitos cívicos”. E mais adiante, no mesmo artigo, esclarecia o que entendia por democracia: “ Democracia não é uma escola política, no género das escolas literárias. É um imperativo de consciência, e tão perdurável como a consciência humana”. A sua posição face às classes trabalhadoras deixa-a bem clara quando, no mesmo artigo escreve; “A classe dos trabalhadores não é para mim como outra qualquer. (…) A educação e emancipação dos trabalhadores, o chamamento dos operários à mais alta vida espiritual, é preocupação suprema de um político de hoje”.
Conhecedor da realidade social do País, e das dificuldades e pobreza das classes mais desfavorecidas, propunha soluções no sentido de lhes melhorar as condições de vida, baseadas nos princípios humanistas que defendia nas suas reflexões de natureza filosófica e sociológica. Considerava a paz, a alegria, a felicidade, a beleza da vida familiar e a liberdade como objectivos fundamentais a atingir. Quanto à solução para os problemas económicos, e conhecedor das teorias marxistas, aceitava nelas a sua faceta humanista de reabilitação das classes trabalhadoras desfavorecidas, mas rejeitava o socialismo de estado. Era um defensor convicto do sistema económico cooperativo, um sistema que se baseasse num espírito de cooperação, esforço colectivo, ajuda mútua, solidariedade humana e honestidade. “Hesito perante o socialismo de Estado, por isso mesmo que sou democrata; prefiro o socialismo cooperativista” (…) Sou antiestatista, eu. Não peço, portanto, o socialismo de estado (…)” in “ Relanços de Doutrina Democrática”.
Como pensador, pedagogo, historiador, ensaísta e filósofo empenhado no desenvolvimento cultural e divulgação das ideias democráticas no seu País, deixou obra notável dispersa por artigos de revista, jornais e livros. Fundou a revista “Pela Grei”, colaborou em revistas como “A Águia” (1910), ”Vida Portuguesa” (1912) Foi director da revista “Seara Nova” ( 1923),” Ensaios” (vários volumes , abarcando os mais diversos temas), “Democracia”, ”História de Portugal”.
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Desempenhou o cargo de Ministro da Instrução, foi co-fundador do movimento “Renascença Portuguesa”. Saiu para o exílio após a revolução de 28 de Maio de 1926.
Inconformado com o novo regime político do Estado Novo, acabou por passar várias vezes pela prisão, devido às suas posições contra a ditadura. E, para concluir esta breve reflexão sobre A. Sérgio e a sua obra vale a pena transcrever da obra “Democracia, Cartas ao Terceiro Homem” o pequeno extracto: “Em suma: só estará de acordo com os meus temas básicos quem tiver intuitos fortemente humanistas; quem for favorável à melhoria do povo, e desfavorável à omnipotência dos tubarões da Finança”. E numa “Alocução aos Socialistas – No Banquete 1º de Maio de 1947”, que podia ser dirigida a outros partidos , deixa um recado: “Aos nossos socialistas, quanto a mim, compete-lhes resistirem ao tradicional costume de se empregarem espertezas e competições de pessoas para apressar o momento em que hão-de chegar ao poder, e nunca considerarem as outras secções democráticas (as outras orientações do esquerdismo) como suas competidoras numa corrida para a meta, como suas concorrentes num mercadejar político, na grande eira tumultuosa das ambições de mando. (…) Antes de tudo, buscai prestigiar-vos ante a nação inteira pelo timbre moral da vossa alma cívica”. (in Obras Completas-Democracia)
António Sérgio morreu em Lisboa em 24 de Janeiro de 1969.


Leonardo Coimbra ( 1883-1936)

Filósofo, orador e político, Leonardo Coimbra, desempenhou um papel importante na cultura e política portuguesas. O seu pensamento filosófico reflecte uma orientação espiritual de oposição ao empirismo e ao idealismo. A sua obra abrange um variado leque de temas sobretudo de conteúdo filosófico: Criacionismo (Esboço de um Sistema Filosófico), Criacionismo (síntese filosófica), Problema da Indução, A Razão Experimental, Pensamento Criacionista, Notas sobre a Abstracção Científica e o Silogismo, Problema da Educação Nacional.
O Criacionismo era uma linha de pensamento filosófica que defendia as capacidades criadoras do pensamento liberta de qualquer determinismo, quer social quer cultural.



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Fundou com Jaime Cortesão e outros, a Sociedade Amigos do ABC, destinada a combater o analfabetismo, foi co-fundador da revista Nova Silva – de orientação anarquista (1907), e da revista “A Águia”, de que foi director e também colaborador.
Fundou,em 1912 com António Sérgio e Raul Proença o Movimento da Renascença Portuguesa, um movimento com objectivos doutrinários, que procurava dinamizar e divulgar a cultura portuguesa através de revistas, jornais, livros e bibliotecas. Publicaram a a revista “Águia” – Orgão da Renascença Portuguesa, entre 1910 e 1932.
A sua actividade política como ministro permitiu-lhe criar as escolas primárias superiores, a Faculdade de Letras onde também foi professor de filosofia e reformar a Biblioteca Nacional. A sua orientação e actividades políticas não foram lineares. Evoluiu, com o tempo, dos grupos anarquistas de que fez parte na sua mocidade, para os ideais republicanos. De membro do Partido Republicano Português, passou-se para a sua facção dissidente, aderindo à Esquerda Democrática. A sua participação activa na vida intelectual e política do País é bem visível na variedade e multiplicidade da obra deixada em defesa da democracia, da justiça social, e da cultura.

Raul Proença ( 1884 – 1941)
Filósofo, doutrinário e activista político cedo aderiu aos ideais republicanos e a sua participação activa na política levou-o a intervir na revolução de 3 de Fevereiro de 1927, o que lhe valeu a exoneração do cargo que desempenhava na Biblioteca Nacional e a ter de se exilar em Madrid. Activo na sua colaboração com a imprensa, escreveu para jornais como “O Republicano”, “A República” para a revista “A Águia”. Integrou o grupo da Renascença Portuguesa – organização que defendia um ideal nacionalista, tendo como finalidade, nas palavras de Jaime Cortesão, “dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana”. Posteriormente a sua evolução ideológica leva-o a fazer parte do grupo fundador da “Seara Nova”. Espírito aberto e democrático, crítico dos vícios e caminhos errados que a República cedo começou a trilhar e não dava sinais de corrigir, a acção de Raul Proença era sobretudo de forte cunho ético-político. A corrupção que grassava no regime, a decadência económica, a falta de sentido de bem comum e solidariedade social, a sobrevivência dos privilégios que tão criticados tinham sido durante o regime monárquico, tudo isso contradizia em absoluto as

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razões e argumentos utilizados pelos primeiros republicanos, factos que desacreditavam o regime e geravam um mal estar incompatível com os ideais sempre apregoados de prosperidade e dignidade da pessoa humana. Daí o seu empenho activo na vida política.
O seu pensamento filosófico foi influenciado por Leonardo Coimbra. Posteriormente a sua evolução ideológica levou-o a fazer parte do grupo fundador da “Seara Nova”. Aderindo à corrente socialista, entendia o socialismo como um processo político em que o poder do Estado se não podia sobrepor ao pensamento do indivíduo. Entendia também que a propriedade não era um valor absoluto que justificasse a sua sobreposição aos interesses e direitos da comunidade em geral. Contribuir para uma distribuição mais justa das riquezas era, no seu entender, um dever de ética, tendo em vista o bem comum. Mas não aceitava que essa acção reguladora fosse exercida de forma violenta e imediata, mas sim lenta e progressivamente.

Agostinho da Silva ( 1906-96 )

Exerceu a sua acção como professor, pedagogo, ensaísta e filósofo, em Portugal e emigrou para o Brasil em 1944, depois de ter cumprido uma pena de prisão por motivos políticos. Leccionou em diversas universidades brasileiras e ajudou a fundar outras como Goiás, Paraíba, Santa Catarina e Brasília e, em 1969, regressou a Portugal passando a trabalhar como consultor do ICALP.
A sua posição política face ao regime salazarista foi de repúdio, pois a liberdade era para ele a mais importante condição para a realização do ser humano tanto individualmente como em sociedade. Concebia a filosofia como um instrumento indispensável para a transformação da vida. Considerava a vida como missão e serviço à comunidade e o “próprio sacrifício” como “a mais bela e mais valiosa recompensa”.De entre a sua obra destacam-se: “Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”, ”Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, ”Glosas” “ A Religião Grega” e outras.
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Delfim Santos (1907-66)
Discípulo de Leonardo Coimbra, licencia-se no Porto, frequenta como bolseiro a Áustria e depois a Inglaterra, seguindo, pouco tempo depois para a Alema-
nha onde trabalhou como leitor de Português. Ali deu conferências sobre a cultura portuguesa, literatura e história de Portugal, nomeadamente sobre o período dos descobrimentos. Na Alemanha contactou de perto com os filósofos alemães Nikolai Hartmann e Heidegger, e dedicou-se ao estudo dos filósofos, Hegel, Schelling, Nietzsche e Kierkegaard. Regressado a Portugal doutora-se em Coimbra e a partir de 1948 exerce as funções de Professor na Universidade de Lisboa. Na sua obra sobressaem, sobretudo, questões de natureza do conhecimento (o científico e o filosófico), limites da relação entre realidade e conhecimento, onde se notam as influências da filosofia alemã.
As sua obras mais conhecidas são : “Situação Valorativa do Positivismo”, Conhecimento
e Realidade”, “O Pensamento Filosófico em Portugal” e “Fundamentação Existencial da
Pedagogia”. Publicou estudos pedagógicos sobre a Paideia grega, sobre Maria Montessori
e Adolfo Coelho.
Outros nomes da filosofia portuguesa poderiam ser acrescentados aos aqui referidos,
mas a escolha feita limitou-se a apenas alguns dos que, a par das suas actividades
intelectuais, se envolveram directamente na acção política a favor da substituição do
regime monárquico pela Republica ou na melhoria das instituições republicanas.
Passado um século sobre a implantação da República, entendeu a consciência nacional que o grande aniversário seja comemorado com várias acções por todo o País. Trata-se de uma iniciativa que merece ser acarinhada. Mas ela não pode ter em vista apenas reavivar e dignificar este período da nossa vida política, relevando acções e factos positivos, ganhos e progresso socioeconómico e sociopolítico conseguidos pelo novo regime. Se for só isto, será muito pouco! Estas comemorações deverão servir também e sobretudo, para reflectir sobre metas há muito programadas e não atingidas. Devem ser aproveitadas como momento de análise das razões que explicam que cem anos depois da implantação da República continuemos tão distantes das demais nações europeias nos planos cultural, social e económico. As comemorações do centenário da República devem servir de incentivo aos políticos que, em nome do povo e pelo povo, chegam ao poder, para que
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honrem os seus compromissos e promessas assumidas aquando das corridas eleitorais. Que o exemplo de honestidade, modéstia, transparência e espírito de servir de alguns ilustres republicanos do passado renasça e sejam concretizadas as velhas aspirações de melhor justiça social, maior progresso e dignificação da pessoa humana.